sexta-feira, 1 de abril de 2011

“Sinhá”

novela de Klaus Novais

Personagens:

Sinhá

duas empregadas
um motorista
um porteiro
e outros serviçais


                                                                        Dedicado a Sérgio Botelho


2011



CENA
1.

É noite na Bahia. Duas pretas queimam velas numa cobertura em Amaralina por motivos muito além dos porquês [como haveria de ser], gesticulam atos mais prosaicos que um sacrifício ou a lavagem de uma escadaria [como se imaginaria]: Uma dobra impaciente as roupas que a outra passa, malemolentemente, entre a lavanderia e o quarto de empregada [como se fosse delas].
            - Sinhá num tá bem...
            - Bem essa daí nunca ´teve.
            - Num tá bem da cabeça – cochicha.
            - Do corpo ela sempre cuidô, quem vê num diz que tá matusquela.
            - Mas tá...
            - Tá matusquela, mas ´inda num rasga dinheiro. Rica-loca até eu!
            - Chama o filho a noite inteira.
            - Parece até que gosta dele...
            Ouvem um barulho na sala.
            - Será que levantô, mâinha?
            - Levantô nada! ´Cê acha? Pede tudo na mão! – faz um gesto de enfado – E a sineta? – pensativa – O pior é que Sinhá é bem mais nova que eu!
            - Quanto?!
            - Num aparento porque sô preta, fia! Mas ela ´tá toda botocada, plasticada!
            - Cada vez pior! – sussurra – E essa agora de apagá as luzes?
            - Eu queria vê minha novela...
            - Trabalhá no escuro? Parece até que a gente virô escrava de novo.
            - Sinhá sempre gostô de escravidão.
            - Pelo menos agora ela paga a gente.
            - Paga pra sê cada vez pior!
            As duas silhuetas riem trêmulas à sombra da vela. Subitamente ouvem o grito de Sinhá a ecoar na sala: - Diabo! As duas mulheres levantam-se num frenesí desproposital, tremem feito vara verde. Ouvem mais uma vez: - Demo!
*
            - Ave mâinha! Lá vem bengalada!
            - Ela que venha! Eu conto tudo pr´os irmão!
            - Ninguém tá nem aí com ela!
            - Mas a gente é que num pode segurá essa ximbica!
            A voz ressoa na sala: - DEMO! DIABA!
            - JÁ VAI, SINHÁ!
            - ´TAMO INDO!
*
            As duas aparecem na sala apatetadas. Sinhá está sentada em sua poltrona preferida, cabelos feitos, unhas pintadas, usa algumas jóias. Vaidosa. Civilizada por antidepressivos. Vê-la ali, assim, contrariava a má fama. O sorriso [quase] pintado no canto da boca tornava impossível reconhecer a voz rasca que, segundos antes, chamara Demo e Diaba. As duas mulheres, no entanto, voltearam a cadeira, olhos grudados nos movimentos de Sinhá. Quem não lembra a vez em que acertou a testa do Zéquim, um preto [pedreiro] que vinha todo dia do Rio Vermelho, até que Sinhá o sangrou e ele nunca mais voltou para terminar o trabalho [A memória da dor é intratável]. Sinhá não usa a bengala para andar, apenas para bater. Herdou do pai o objeto e o hábito. Elas temiam Sinhá, ao ponto de, tremerem de um medo antigo, de senzala, um medo desumano de sentir.                                            

Nenhum comentário:

Postar um comentário