terça-feira, 26 de julho de 2011

SINHÁ - cenas 11-12-13

11.
A história do filho é complicada. Rapaz assombrado por antepassados: o pai morto cedo, acompanhou-o por toda a vida. Hamlet agreste. Vivia uma vida misturada com a morte [Tanatos em si], todo excessos. A história de uma Bahia em que ninguém mais vivia. Vestia gibão, usava barbas longas. Suas histórias ecoavam nos tempos modernos que viriam, mas tinham força naquela época em que vivia.
Teve um dia que o rapaz foi de madrugada numa outra fazenda pegar na farra com amigos. Beberam a noite inteira, ele e seus camaradas, dançaram muito, divertiram a matronada e, na volta, em cima da mula, bêbado, chacoalhando pela estrada iluminada pela lua, vez ou outra, ele caído no lombo, via de resvalo atrás de si, a sombra de um homem imenso que o acompanhava, lento, ritmado.
Vivia num mundo de esquecimento [cada veneno]. Bebia para esquecer aquilo que sobrevivia à mãe [mundo pequeno]. Figura emblemática: estudou, leu, aprendeu culturas mas nada de trabalhar. Não tirou nem documentos, não sentia vontade ou a obrigação de sentí-la, trabalhava naquela casa, para sua mãe. Sobrevivia anestesiado, caído nas praças de Pituba, cachorro lambia o beiço seu. Às vezes, virava mendigo no Pelourinho, nas gamboas. Bebia de virar o olho e não esquecia nada. Era de uma lucidez atrós quando bêbado. Diabo da memória.
            Quando foi preso, agradecia o pai estar morto. Pensava a vergonha que seria ver o homem que foi, vê-lo na cadeia. Não esquecia a noite em que bateu o carro, sonhou que ele, menino, no sertão, teve conversa com o pai, a sorrir feliz, aos pés da sua cama. Na cadeia comeu o pão que o diabo amassou por conta de uma treta de estar no lugar errado, na hora errada, num carro, com bandidos.
- As histórias na Bahia são sempre desenganos. Contos de areia...
12.
A empregada fala ao interfone.
            - Zecarlinhos, dona Sinhá quer que você desligue o ar condicionado.
            - (voz interfonada) Eu é que não subo mais aí!
            - Eta! Baiano quando não é corajoso, é medroso demais.
            - (voz interfonada) ´Cê quer o quê? Que eu leve mais uma na cabeça?
            - Dona Sinhá num qué sabê! Quer que desligue o ar!
            - (voz interfonada) Com esse calor?
            - Com esse calor!
O porteiro sobe e entra no apartamento.
            - Como você está amarelo, rapaz! Só fica preto ou amarelo? Branco não?
            - Olha, dona Sinhá...
            - (interrompe) A máquina tá na área de serviço, me acompanha, por favô!
Os dois entram na area de serviço.
            - Ô doido! Tá doidinha, né?
            - Num falei! A gente precisa fazê alguma coisa...
            - Ela tá precisando de médico, isso sim! Ou centro espírita!
            - Será que a gente deve ligar pra família?
            - Pra quê? Pra quem? Ninguém quer saber dela...
            - O filho em São Paulo...
            - Sei não... até parece que eles num sabe que ela tá doida...
13.
Toca o telefone, Sinhá atende na sala. Os dois prestam atenção à conversa.
            - Filho! Comprou as passagens?!
Hiato dramático. Os dois cochicham na cozinha.
            - ´Cê acredita? Depois daquilo tudo?
            - Esse filho nunca mais voltou!
Na sala Sinhá pigarreia. Os dois se atentam.
            - Vou, filho, vou. Vou ficar com as malas prontas.
No silêncio quase se ouvia a respiração dos dois na cozinha.
            - Você vem? Um rebuliço acontece na sala. Tudo, filho! Te espero com pronta!
Sinhá toca a sineta histérica.
            - TRASTE! DEMO!!! Venham cá! Meu filho vem! Meu filho vem aí!!!
Os três empregados aparecem na sala com cara de nada a dever.
            - Tudo escondido atrás das portas! Bando de traste! Vou embora pra São Paulo com o MEU FILHO! MEU FILHO VEM ME BUSCAR!!!
A mulher agita-se, anda pela casa revigorada.
            - Vou viver lá, no Jardim América, Higienópolis, Moema!
 Os empregados balbuciam entre si.
            - E nós?!
            - Nós vamos ficar bem melhores!
            - Num sei não...

quarta-feira, 6 de julho de 2011

SINHÁ - CENAS: 8-9-10

8.

Os homens desceram as escadas correndo. As mulheres trancaram-se no quarto.
- Sinhá dá muita história pra contar! Aconteceu muita coisa naquela casa...
            Os negócios do pai começaram a sofrer com a crise do cacau. O marido teve de tomar atitudes, arrojar-se na produção da fazenda que sucumbia entre secas e más colheitas. Passou a comerciar para outros fazendeiros, representar em outras cidades. A negra trabalhava para o pai de Sinhá, para a mãe de Sinhá e para Sinhá. Era muita sinhá para uma só existência. Ela não conseguia se comunicar com a patroa, gaguejava até não poder. No futuro, o filho de Sinhá adquiriria a mesma mania.
            - O menino era tratado a pão de ló pelo pai, homem bom para a família [até para Sinhá], mas sempre viveu bem sob os cuidados das empregadas. Até que o pai morreu num episódio, além de trágico, místico, que marcou o menino por toda a vida. A partir daí, a vida mudou: o garoto mimado passou a ser o saco de pancadas da mãe [em todos os sentidos] e passou a ter a tarefa dos empregados que foram colocados no olho da rua, na crise que se abateu. A mãe era inclemente.
            Aos dezessete anos fugiu de casa, exausto de tanto trabalhar, jurou nunca mais voltar a ser explorado. Entrou noite adentro à procura de carona, numa boléia contou ao caminhoneiro sua história. O homem ao volante percebeu a pouca idade e propôs: - Levo você até sua mãe e se ela disser que você pode cair no mundo, eu te trago comigo, te trato como filho e você cai na estrada, mais eu! Ao voltar para casa, a cena de choro molhado, rajada de lágrimas que se viu quando aquela mulher encontrou o filho, não se faz mais não. Ne3m dava para acreditar que quando o pai morreu no acidente de carro, o menino tornou-se de filho, um escravo. Sinhá não saía da cama, sem forças para nada, só mandar. A memória do pai no rosto do rapaz: tinha de sofrer quem amava Sinhá.

9.

É de manhã. As duas mulheres cochicham na lavanderia enquanto passam roupas.
- E essa agora de não deixar a gente usar a máquina de lavar louça, a secadora?
- Diz que é pra não deixá a gente mal acostumadas!
- Até parece que vô desaprendê a lava louça... tsc!
- Mania de rico achar que pobre não sabe nada! Desaprende tudo! Nem aprende!
- Tudo apagado numa cobertura, pode?
- Também num entendo! Onde será que ela quer chegar?
- cochicha mais baixinho - Quer arrancar mais algum dinheiro de alguém!
De repente, um vulto branco se joga da cozinha sobre as duas mulheres.
- MACABRAS! MACABRAS! MACABRAS!
- Socorro, mâinha! SOCORRO! Ela tá me mordendo!
- Dona Sinhá! LARGA, DONA SINHÁ! – puxando a mulher.
- Vou matar vocês! SUAS DEMO!!!
- Levanta da cadeira de roda só pra fazê maldade, Ê CÃO!
- CALABOCA, PRETA!
Dona Sinhá tem na face uma máscara de pepino que a deixa aterrorizante.
- Quem foi que ligou o ferro de passar roupas, suas demônio?!
- Tem que passar as roupa, né, dona Sinhá?!
- Tem de passar com o ferro à brasa, já disse, suas PREGUIÇOSAS!
- ÔXI!

10.

            Dona Sinhá sai cambaleante, passa na caixa de energia, retira um fusível e entra no quarto. As duas mulheres na penumbra, colocam fogo no braseiro.
- Mãe, como a gente deixa essa mulher tratar a gente assim?
- Ela já tratava assim a minha mãe, fia.
- Nós tem orgulho da nossa raça, mãe! Nós é preto, nós é zambi!
- Uma vez, ela jogou água fervendo na mãe...
- Isso é crime. Hoje em dia tem lei.
- Nós não tem pra onde ir.
- Nós é livre, mãe. É só a gente querer sair daqui que a gente sai. Agora.
- Num sei não se a gente é livre. Tem hora que eu tenho medo da Dona Sinhá ter um documento, um contrato dizendo que eu sô dela, boneca da menina-patroa...
- Por quê ela queimou a vó?
- Porque a vó falô que a água num tava quente. Pra provar que tava, ela jogou.
- Ela faz isso com tudo que é preto?
- Ela faz isso com qualquer um, mas quando ela fica incomodada com alguém, então, aí você nem imagina do que é capaz de fazer. Quando o filho trouxe a paulista grávida pra casa, precisava ver o inferno que foi isso aqui.
- Finalmente alguém que enfrentou a fera? Bateram de frente?
-De frente? O prédio todo ouviu a paulista arretada! O casalzinho dormiu na praia mais de 15 dias, a grávida ficou conhecida porque gritava o nome de Sinhá aos sete ventos. Teve vaia na porta do prédio. Dona Sinhá já foi muito odiada...  

segunda-feira, 16 de maio de 2011

CENA 7 - Sinhá


7.

As mulheres ouvem o diálogo insólito, entre dois homens, na sala.
- Pega as pernas que eu pego os braços!
- Se a cabeça cair, eu seguro!

Assustadas as duas vêm o motorista e o porteiro carregarem Sinhá.
- O que aconteceu, homi? Mataram Sinhá?!
- Dona Sinhá caiu no meio do Shópis!
- É o Gardenal! – ironiza a filha – Vive entupida!
- Outro dia, vi pela câmera da portaria, dona Sinhá perdidinha no elevador!
Todos riem.  Entram e colocam a mulher sentada na cadeira a cochilar.

- E no Shópis? Deu ataque?! Surtô?
- Cada vez que vai é um bafo diferente!
- Num ia falá mas, nas lojas, Sinhá pergunta o preço de tudo pros pretos.
- Pra ela, todo preto é empregado!
Ouvem Sinhá remexer na cadeira.

- cochicha - Se ela pega vocês aqui, vai fazê um escândalo.
- Na rua, ela fala cada coisa... qualquer hora leva um processo!
- Ela num pode nem participá da reunião de condomínio mais!
- Outro dia, ela passô pela portaria e me chamô de “baiano”.
- E daí? Você num é “baiano” mesmo?
- Pois é! Quem é ela pra me chamá de “baiano”?!
De repente, uma bengala gira e espouca na cabeça do motorista.

- Ai, Sinhá! Num bate em nós, não! – protegendo-se dos golpes.
- Ai, dona Sinhá! Sou eu: o Zecarlinhos! – rindo bestamente.
- Ô dona Sinhá, eu sô o “baiano” da portaria.
- cega – Saiam daqui! Seus baianos!
Os quatro saem desembestados.

domingo, 15 de maio de 2011

Sinhá - cenas: 4, 5 e 6


4.

            Sinhá sempre foi rica, princesinha do cacau: sinhazinha. Caprichosa, dizem que mandou sangrar uma menina [preta], filha de uma empregada [diria escrava], que não chamou Sinhá de “Sinhá”. Daí ganhou o nome do qual tanto se orgulha. Isso por volta de 1960, muito além da era da escravidão. O pai, coroné daqueles à moda antiga, jagunçada toda em volta de si. O homem só não teve sorte na família: a mulher morreu de morte prematura, os varões da casa sucumbiram em brigas. Restou-lhe a menina que, desde pequena, vive às turras com tudo e todos.
            Quando foi para casar, o pai aproveitou que simpatizava com um moço bom, filho de gente turca há muito estabilizada no comércio mascate no Recôncavo e nos agrestes da Bahia. Mandou buscar o rapaz, botou sobre a mesa um pacote de dinheiro e a escritura de uma fazenda, mandou que produzisse apenas para o sustento dos seus, que nada mais lhes faltaria. Acostumado à vida das estradas, mascate de si e suas quinquilharias, não recusou o convite, mas também não obedeceu de pronto conforme o prometido. Após casado, cuidou da fazenda como quis, prestando contas de tudo somente à Sinhá, sua dona resoluta.

*

            - Sinhá sempre foi bonita?
            - Sempre. Linda!
*

             - O que ela fazia da vida?
            - Sinhá sempre dominô tudo! Ademais, nunca fez nada! Nunca trabalhô, ao contrário, sempre teve um trabalho “pra desfazê”. Em casa, viveu sempre cercada de empregados, mucamas, serviçais, camareiras, iaiás. Não cuidou nem do menino quando nasceu. Uma preta foi ama de leite. Sinhá nunca estudô, nunca foi amiga das ideia, das delicadeza, das arte. Só é amiga de político e de bancário. Sinhá precisa de gente pra desembaraçá suas contas. Sinhá ganhô dinheiro, foi beneficiada, recebeu herança, pensão de pai e de marido [gostaria também de receber do filho]. Muito dinheiro pra uma mulhé só. E agora essa de deixá tudo às escuras?

5.

            As empregadas acordaram pela manhã, assustadas com os gritos de Sinhá:

            - Os pretos estão invadindo o meu apartamento!

            Um homem trajando um uniforme de motorista de madame, digno de loja de fantasias, aparece na sala a usar quepe galoado e um par de luvas brancas.

            - Que é isso dona Sinhá, sou eu, o Zé Carlos!

            Sinhá o observa, admirada:

            - Zecarlinhos?! Quase mata a baiana de susto! Como você tá preto, meu filho!
            - É o Verão, dona Sinhá! – riem.
            - Vamos ao Shopping Center! – diz Sinhá ajeitando-se na cadeira de rodas.

            As duas mulheres aparecem e ficam recostadas ao batente, escondidas.

            - Não deviam tirá o cartão de crédito dessa maluca?
            - Vira essa boca pra lá! É dali que sai nosso pagamento!
            - Espero que compre alguma coisa útil pelo menos... sapato tá cheio!
            - Gasta fortuna em sapato, essa daí, e regula cada coisa...

            Sinhá pede que Zecarlinhos empurre sua cadeira de rodas até o elevador. Vai sentada como uma rainha, toda emperequetada, as pernas torneadas negam o pouco empenho às atividades físicas. Na garagem, levanta-se rapidamente e entra no carro, nem aparenta a idade que tem. No caminho, pede para que o motorista passe devagar perto da área militar de Amaralina. Lembra que o pai foi laureado – esnoba gente simples com palavras difíceis – um benfeitor do exército [ou, por ter sido um delator na ditadura militar]. Sinhá conta tudo com orgulho ao que o outro, do outro lado de mundos inimagináveis, meneando a cabeça num sorriso satisfeito, olhando-a pelo retrovisor do carro, concorda:

            - Sim, dona Sinhá! Sim!

6.
            No apartamento, a moça explora a sala na ausência de Sinhá. Observa que entre as várias fotos na estante – como mâinha dizia – “de antigamente”, não havia UMA foto do filho da patroa. Apenas fotos dela: vestida de noiva, numa tarde em Itapoã, lembranças perdidas entre as dezenas que colecionava de si mesma.
            - Por que num tem foto do filho, mâinha?
            - Ih, essa história é toda cheia de buraco, fia.
*
            Sinhá, superprotetora, sufocou o filho desde a infância com exigências que extrapolavam limites: que estivesse sempre impecavelmente vestido, participasse dos eventos católicos: fizesse a primeira comunhão, fosse coroinha. Foi impossível ao menino desobedecer à Sinhá. Foi coroinha. Passava os Domingos enfiado na igreja. Era chamado de carola pelos amigos de escola. Em casa, andava para cima e para baixo, seguido o dia inteiro por criadas e iaiás. Não podia fazer nada. Nem brincar nem sujar a roupa de algodão egípcio que vinha parar na Bahia nas mãos dos mascates, velhos amigos do pai. O menino sempre viveu assim, tendo o bom [e o pior] do excesso de zelo e de abandono [em doses desiguais].

*

            - Sinhá nunca deu atenção pro menino, não...
            - Vixe! E por que ela dá tanta atenção agora?
            - Porque ele num qué nem sabê dela!
            - E os telefonemas lá de São Paulo?
            - ´Cê acredita? Isso é coisa da cabeça de Sinhá.
            - E é?!
            - Num tô lhe dizendo que a mulhé tá doida?! Se eu lhe contá...

            Ouvem barulhos na porta da sala.
Continua...