domingo, 15 de maio de 2011

Sinhá - cenas: 4, 5 e 6


4.

            Sinhá sempre foi rica, princesinha do cacau: sinhazinha. Caprichosa, dizem que mandou sangrar uma menina [preta], filha de uma empregada [diria escrava], que não chamou Sinhá de “Sinhá”. Daí ganhou o nome do qual tanto se orgulha. Isso por volta de 1960, muito além da era da escravidão. O pai, coroné daqueles à moda antiga, jagunçada toda em volta de si. O homem só não teve sorte na família: a mulher morreu de morte prematura, os varões da casa sucumbiram em brigas. Restou-lhe a menina que, desde pequena, vive às turras com tudo e todos.
            Quando foi para casar, o pai aproveitou que simpatizava com um moço bom, filho de gente turca há muito estabilizada no comércio mascate no Recôncavo e nos agrestes da Bahia. Mandou buscar o rapaz, botou sobre a mesa um pacote de dinheiro e a escritura de uma fazenda, mandou que produzisse apenas para o sustento dos seus, que nada mais lhes faltaria. Acostumado à vida das estradas, mascate de si e suas quinquilharias, não recusou o convite, mas também não obedeceu de pronto conforme o prometido. Após casado, cuidou da fazenda como quis, prestando contas de tudo somente à Sinhá, sua dona resoluta.

*

            - Sinhá sempre foi bonita?
            - Sempre. Linda!
*

             - O que ela fazia da vida?
            - Sinhá sempre dominô tudo! Ademais, nunca fez nada! Nunca trabalhô, ao contrário, sempre teve um trabalho “pra desfazê”. Em casa, viveu sempre cercada de empregados, mucamas, serviçais, camareiras, iaiás. Não cuidou nem do menino quando nasceu. Uma preta foi ama de leite. Sinhá nunca estudô, nunca foi amiga das ideia, das delicadeza, das arte. Só é amiga de político e de bancário. Sinhá precisa de gente pra desembaraçá suas contas. Sinhá ganhô dinheiro, foi beneficiada, recebeu herança, pensão de pai e de marido [gostaria também de receber do filho]. Muito dinheiro pra uma mulhé só. E agora essa de deixá tudo às escuras?

5.

            As empregadas acordaram pela manhã, assustadas com os gritos de Sinhá:

            - Os pretos estão invadindo o meu apartamento!

            Um homem trajando um uniforme de motorista de madame, digno de loja de fantasias, aparece na sala a usar quepe galoado e um par de luvas brancas.

            - Que é isso dona Sinhá, sou eu, o Zé Carlos!

            Sinhá o observa, admirada:

            - Zecarlinhos?! Quase mata a baiana de susto! Como você tá preto, meu filho!
            - É o Verão, dona Sinhá! – riem.
            - Vamos ao Shopping Center! – diz Sinhá ajeitando-se na cadeira de rodas.

            As duas mulheres aparecem e ficam recostadas ao batente, escondidas.

            - Não deviam tirá o cartão de crédito dessa maluca?
            - Vira essa boca pra lá! É dali que sai nosso pagamento!
            - Espero que compre alguma coisa útil pelo menos... sapato tá cheio!
            - Gasta fortuna em sapato, essa daí, e regula cada coisa...

            Sinhá pede que Zecarlinhos empurre sua cadeira de rodas até o elevador. Vai sentada como uma rainha, toda emperequetada, as pernas torneadas negam o pouco empenho às atividades físicas. Na garagem, levanta-se rapidamente e entra no carro, nem aparenta a idade que tem. No caminho, pede para que o motorista passe devagar perto da área militar de Amaralina. Lembra que o pai foi laureado – esnoba gente simples com palavras difíceis – um benfeitor do exército [ou, por ter sido um delator na ditadura militar]. Sinhá conta tudo com orgulho ao que o outro, do outro lado de mundos inimagináveis, meneando a cabeça num sorriso satisfeito, olhando-a pelo retrovisor do carro, concorda:

            - Sim, dona Sinhá! Sim!

6.
            No apartamento, a moça explora a sala na ausência de Sinhá. Observa que entre as várias fotos na estante – como mâinha dizia – “de antigamente”, não havia UMA foto do filho da patroa. Apenas fotos dela: vestida de noiva, numa tarde em Itapoã, lembranças perdidas entre as dezenas que colecionava de si mesma.
            - Por que num tem foto do filho, mâinha?
            - Ih, essa história é toda cheia de buraco, fia.
*
            Sinhá, superprotetora, sufocou o filho desde a infância com exigências que extrapolavam limites: que estivesse sempre impecavelmente vestido, participasse dos eventos católicos: fizesse a primeira comunhão, fosse coroinha. Foi impossível ao menino desobedecer à Sinhá. Foi coroinha. Passava os Domingos enfiado na igreja. Era chamado de carola pelos amigos de escola. Em casa, andava para cima e para baixo, seguido o dia inteiro por criadas e iaiás. Não podia fazer nada. Nem brincar nem sujar a roupa de algodão egípcio que vinha parar na Bahia nas mãos dos mascates, velhos amigos do pai. O menino sempre viveu assim, tendo o bom [e o pior] do excesso de zelo e de abandono [em doses desiguais].

*

            - Sinhá nunca deu atenção pro menino, não...
            - Vixe! E por que ela dá tanta atenção agora?
            - Porque ele num qué nem sabê dela!
            - E os telefonemas lá de São Paulo?
            - ´Cê acredita? Isso é coisa da cabeça de Sinhá.
            - E é?!
            - Num tô lhe dizendo que a mulhé tá doida?! Se eu lhe contá...

            Ouvem barulhos na porta da sala.
Continua...

Um comentário:

  1. Ki praga esta mulher...noveleiro que sou,mais uma novela para eu acompanhar!

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